Ao longo de cinco décadas, o trabalho do Incra transformou a vida de famílias e de comunidades. Em Santa Bárbara do Sul – no Noroeste gaúcho – moradores do assentamento Canta Galo são destaque no fornecimento de gêneros alimentícios. Também protagonizaram parceria inédita no Rio Grande do Sul para agilizar a titulação das terras.
As raízes da trajetória encontram-se em 9 dezembro de 1997, quando o Incra criou oficialmente o assentamento Canta Galo destinando 588 hectares a 36 famílias com lotes de cerca de 16 hectares. A área situa-se no município de aproximadamente oito mil habitantes e 1,6 mil imóveis rurais com declaração dos proprietários processada no Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR).
Após 22 anos da implantação, o assentamento santa-barbarense protagonizou as duas primeiras experiências legalizadas pelo Sistema de Inspeção Municipal (SIM). Diversificou as opções locais de abastecimento e abriu caminho para outras agroindústrias familiares cumprirem os requisitos de regularização.
Almir Hahn foi o pioneiro. Dedicado à produção de grãos e leiteira, inaugurou o Laticínio Santa Bárbara em outubro de 2019. A novidade atraiu agricultores e autoridades locais para a cerimônia de lançamento.
Conforme o empreendedor, a unidade fabrica cerca de 120 quilos de queijos por semana, além de leite pasteurizado, doce de leite, ambrosia e requeijão. A matéria-prima é gerada no próprio lote, por 12 vacas, a depender da época do ano, e divide espaço com canteiros de morangos já implantados.
Os produtos são vendidos em dois mercados na cidade e fornecidos ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (cujos contratos foram temporariamente suspensos em função da covid-19). Os itens também estão disponíveis na Casa do Produtor – feira semanal na qual os assentados mantêm duas das quatro bancas em funcionamento.
Antes de chegar a esse patamar, a família Hahn frequentou cursos e visitou empreendedores. Exigências relativas à estrutura de produção foram financiadas pelo Pronaf Mais Alimentos. “Eles não só foram habilitados pelo SIM, como estão preparados para voos mais altos, como o selo Sabor Gaúcho (concedido pelo governo estadual)”, revela o engenheiro agrônomo da Emater-RS/Ascar, Ivo Dalke.
Cotidiano agitado
Poucos meses após o Laticínio Santa Bárbara ligar os equipamentos, a agroindústria de Embutidos Souza & Silva seguiu seu exemplo.
A proprietária, Sirlei de Fátima Souza da Silva, conta que a elaboração de linguiça e afins sempre foi uma prática familiar. No ano passado, a atividade destinada ao consumo doméstico ganhou contornos de negócio. Ela, o marido, Luis Carlos, e os filhos decidiram converter um galpão em espaço para produzir salames, torresmo, morsilhas e banha.
O Pronaf Mais Alimentos financiou adaptações no prédio como revestimento e altura. Em março de 2020, a obra ficou pronta e entrou em operação.
Aos 16 anos, a filha Lavínia assumiu o controle do fluxo de mercadorias e as finanças da iniciativa. Conforme seus apontamentos, a agroindústria tornou-se a principal fonte de renda da família antes de completar seis meses aberta. Gerou lucro para pagar a primeira parcela do financiamento e demandou um veículo maior, além de garantir o sustento da casa.
As vendas ocorrem em 14 estabelecimentos de Santa Bárbara do Sul e no lote “tem uma arrozeira (empresa beneficiadora de arroz) grande perto e os motoristas param para comprar salame”, revela Lívia. Outra parte da demanda é atendida na Casa do Produtor. A procura é tão grande que os Silvas precisam abrir o ponto duas vezes por semana.
No lado de dentro da porteira, o núcleo familiar precisou reorganizar o tempo, que antes era ditado pela produção leiteria por ter sido a principal atividade econômica. O cuidado com a criação agora convive com processamento, embalagem e comercialização dos embutidos. “Tudo isso junto com a covid-19. Foi tudo tão rápido que ainda não caiu a ficha”, observa Lavínia.
Proprietários
Para Sirlei, a satisfação de legalizar a agroindústria Souza e Silva é comparada a um sonho coletivo mais antigo: a titulação do Canta Galo. “A gente queria ser dono da terra, deixar segurança para os filhos. Sem título, eles não podem ter talão de produtor”, justifica.
A família vislumbrou a oportunidade de atingir esse objetivo em janeiro de 2018, quando parte dos vizinhos precisou atualizar a Inscrição de Produtor Rural na Receita Estadual. Ao reunir a documentação, perceberam que haviam cumprido determinados requisitos para os Títulos de Domínio (TDs), que transferem a propriedade dos lotes para os beneficiários da reforma agrária em caráter definitivo.
Entretanto, faltava a certificação da área georreferenciada do assentamento. A associação de moradores resolveu não aguardar a execução da tarefa pelo Incra. Com base na Nota Técnica Conjunta Incra nº 01/2017/DD/DF e orientação da Unidade Municipal de Cadastramento (UMC), solicitou autorização para contratar um profissional credenciado pelo instituto a realizar os trabalhos de campo. Depois forneceu as informações e as peças técnicas para a autarquia incluir em seus sistemas e emitir os títulos.
Os documentos foram entregues em cerimônia realizada em dezembro de 2019, próxima ao aniversário de 22 anos do assentamento. Todas as áreas foram pagas à vista pelos beneficiários e seguiram para registro cartorial em julho de 2020. O exemplo repetiu-se em outros 13 assentamentos localizados em oito municípios gaúchos totalizando 580 famílias.
“Não tem como explicar a alegria. Agora somos donos de verdade do lote. Ninguém vai nos tirar”, resume Sirlei.