Titulação resguarda território centenário da primeira comunidade quilombola rural regularizada no Rio Grande do Sul

Foto: Incra /RS - Moradores do quilombo de Casca, com o testamento ao fundo que garantiu o território aos descendentes

Quase dez anos após receber os primeiros títulos das terras onde historicamente vivem, os remanescentes da comunidade quilombola de Casca, em Mostardas, no Rio Grande do Sul, contabilizam conquistas obtidas a partir do reconhecimento de seus direitos pelo Estado brasileiro. Da reestruturação de serviços essenciais, como habitação, água e luz, ao acesso ao ensino superior para os jovens, a demarcação do território foi fundamental para a manutenção social e econômica do grupo.

O processo para regularização fundiária da área foi aberto no Incra em 22 julho de 2004 e culminou com a entrega da documentação definitiva em 20 de novembro de 2010. Na ocasião, 1,2 mil do total de 2,3 mil hectares foram titulados. Em 2018, foram emitidos títulos de mais 56,6 hectares e repassados à comunidade Contratos de Concessão de Direito Real de Uso Coletivo (CCDRU) de 285 hectares. Atualmente, o Incra possui imissão de posse do restante da área, e aguarda conclusão judicial para finalizar a titulação.

Integrantes da comunidade iniciaram os movimentos pela regularização por volta de 1970. Com apoio de entidades vinculadas à causa quilombola e embasados em legislação específica, se organizaram e fundaram a Associação Comunitária Dona Quitéria, em junho de 1999. O nome é uma referência à proprietária que deixou em testamento o imóvel a todos os escravizados libertos, quase 200 anos antes.

“A gente conversava muito, fomos de casa em casa perguntando a opinião de cada um e todos concordaram que precisávamos ter as terras em nosso nome. Com ajuda do governo, fomos pessoalmente a Brasília (DF), na Fundação Palmares, e quando iniciamos o processo foi uma festa, mesmo sabendo que seria luta”, lembra uma das primeiras articuladoras, Ilza de Matos Machado, que acolhia as reuniões em sua casa.

Casca foi a primeira comunidade quilombola reconhecida no Rio Grande do Sul, recebendo a certificação da Fundação Cultural Palmares em 2001. Aos 77 anos, Ilza compreende que a persistência e a auto-organização foram fundamentais. “Nunca saímos daqui, veio vindo de geração em geração até hoje. Por isso, o título que o Incra forneceu é uma dádiva, uma garantia de vida”, avalia.

Para o atual presidente da associação, Antônio Roberto Lopes de Oliveira, a elaboração de mapas, a colocação de marcos delimitativos e os títulos das terras representam segurança e autonomia para as 80 famílias que compõem o território. “Temos a certeza de estar no que é da gente, cada um cuidando de seu pedacinho, e preservando o que os nossos antepassados deixaram”, considera.

Essencialmente voltados a atividades rurais, os moradores dedicam-se à criação de ovelha e gado e ao plantio de arroz – principais fontes de renda –, e cultivam alimentos para autoconsumo, como feijão, batata-doce, milho e aipim, entre outros.

Além do direito territorial
O empenho coletivo para a regularização fundiária também ampliou o horizonte dos quilombolas para as demais políticas públicas direcionadas à melhoria das condições de vida desta população.

“Abriu um leque na vida da comunidade, mudou tudo. Antes o governo não conhecia a gente e, durante o processo e depois da titulação, chegaram muitas oportunidades”, afirma Ilza.

A instalação da energia elétrica proporcionou a abertura do poço artesiano para aperfeiçoar o abastecimento de água; as moradias foram qualificadas; e a garantia da propriedade definitiva das terras facilitou o financiamento bancário para investimentos e o recebimento de recursos oriundos de diferentes instituições governamentais. Símbolo da autoestima e da resistência, a nova sede da associação comunitária está em fase final de construção. Trata-se de um prédio de alvenaria de 390 metros quadrados, com salão, cozinha, banheiros e duas salas – uma delas para computadores.

Os veteranos comemoram o legado da terra e suas realizações, como a educação. “Não tínhamos estudo, hoje nossos filhos têm faculdade graças às cotas na universidade. Já temos agrônomos, professores e outros formados em curso superior na comunidade. Os jovens entendem que o que os pais estão fazendo é para levar adiante a nossa história e para não perdermos nossa identificação quilombola”, argumenta o morador Oliveira, aos 56 anos, “nascido e criado” no local, assim como o pai de 82 anos – um dos mais antigos do grupo.

Séculos de história
Situada entre o Oceano Atlântico e a Lagoa dos Patos, a área quilombola foi deixada em testamento em 1824 por Quitéria Pereira do Nascimento a famílias que trabalharam em sua fazenda, desmembrada da antiga Sesmaria do Retovado.

O inventário da herança foi concluído em 1826 quando os ex-cativos receberam as terras, as casas, o gado, ferramentas e a alforria. A cláusula de inalienabilidade, incluída no documento deixado por Quitéria, visava impedir que as terras fossem comercializadas e continuassem como a base do sustento das famílias que viviam nos chamados “Campos da Casca”.

São exigências referendadas pela titulação coletiva, imprescritível e pró-indivisa do território aos descendentes dos herdeiros, que permanecem na localidade preservando laços de parentesco e cultura.

Reparação
A regularização fundiária de áreas quilombolas foi incorporada ao Incra em 2003. Desde então, 106 processos foram abertos na regional gaúcha do instituto, sendo quatro deles já concluídos com a titulação das terras. A comunidade de Casca foi a primeira em zona rural no estado a ser titulada, seguida por Rincão dos Martimianos, no município de Restinga Seca, além dos quilombos urbanos Chácara das Rosas, em Canoas, e Família Silva, em Porto Alegre.

Atendendo à Portaria nº 175/2016 – que reconhece os quilombolas como beneficiários do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA), assegurando-lhes participação equivalente aos assentados em programas de inclusão socioprodutiva, de créditos e fomentos – o Incra/RS cadastrou, em dezembro de 2017, integrantes das comunidades tituladas de Casca e Rincão dos Martimianos. Os dados apurados estão em análise e a autarquia planeja as próximas etapas da ação.

Fotos: Arquivo Ascom-Incra/RS

 

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