A Região dos Lagos é hoje uma importante área turística do Estado do Rio de Janeiro. Todavia, no século XVII, sua relevância girava em torno da Fazenda Santo Ignácio dos Campos Novos. Dirigida por padres jesuítas, a fazenda tinha a missão de servir como espaço físico para catequização dos índios, além de centro de abastecimento de gado, hortaliças e madeira. Era também para lá que eram levados os africanos escravizados, ao desembarcarem no litoral.
Campos Novos corresponde a uma área que abrange hoje todo o município de Armação dos Búzios e parte dos municípios de Cabo Frio e São Pedro de Aldeia. Ao longo dos anos, o território foi marcado pelo conflito de terra e pela herança histórica. Em um contexto de transformações sociais, a atuação da Superintendência Regional do Incra no Rio de Janeiro se cruza de forma significativa com a trajetória das famílias que descendem dos trabalhadores da antiga fazenda jesuítica, provocando mudanças definitivas até os dias atuais.
Com dois assentamentos criados, um território quilombola titulado e mais cinco em processo de regularização fundiária, a estimativa é que aproximadamente 1,3 mil famílias que se originaram direta ou indiretamente de Campos Novos tenham sido beneficiadas pelo Incra desde a década de 1980.
Contexto histórico
A Fazenda Santo Ignácio dos Campos Novos foi construída em 1690 pelos jesuítas com o objetivo de estabelecer vilas e povoados para abrigar pessoas que pudessem dissipar os contatos entre os índios Tamoios, moradores da região, e as embarcações estrangeiras inimigas da Coroa Portuguesa. Quando os jesuítas foram expulsos do Brasil, em 1759, o local foi leiloado pelo Império português e arrematado por um comerciante que vivia no Rio de Janeiro.
Muitos ex-escravizados continuaram morando na fazenda, mesmo depois da assinatura da abolição, em 1888. No início do século 20, a área foi comprada pelo empresário alemão Eugênio Honold, que condicionou a permanência dos libertos ao pagamento com trabalho pelo uso da terra. No entanto, pessoas negras que viviam em locais um pouco mais distantes da sede da fazenda conseguiram permanecer onde estavam sem pagar qualquer tipo de renda.
Em 1943, com a promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), muitos fazendeiros abandonaram suas propriedades, em função do maior rigor das leis trabalhistas. Com Honold não foi diferente: ele deixou Campos Novos sob os cuidados do filho, que morava no Rio de Janeiro, e este delegou a administração da propriedade a um de seus empregados, conhecido como Português. Quando o filho do alemão faleceu sem deixar herdeiros, Português desistiu de continuar com os serviços.
Conflitos e assentamentos
O período entre 1940 e 1950 foi marcado por investimento do governo do estado na região, com obras de abertura de estradas, drenagem e saneamento. A mudança atraiu especulação imobiliária para o local, dando início aos conflitos de terra. Muitos moradores chegaram a ser enganados por grileiros, assinando contratos em branco e sendo expulsos da terra onde viviam por gerações.
O agravamento da crise provocada pelas disputas de terra fez com que o Incra inaugurasse um escritório no município de São Pedro da Aldeia em 1984, quando a primeira parte da fazenda foi desapropriada. O assentamento Campos Novos foi criado em 1986, na vizinha Cabo Frio, para abrigar 217 famílias em aproximadamente 3,2 mil hectares.
O local chegou a ser recordista em produção de leite entre os assentamentos fluminenses. Hoje, já titulado, ainda conta com a produção na parte que mantém características rurais: as glebas A e B, situadas no bairro do Angelim. Já as glebas C e D sofreram um processo de urbanização. Além disso, parte dos assentados que vivem ali hoje se reconhecem como quilombolas da comunidade Botafogo, cujo processo de regularização fundiária encontra-se em trâmite no Incra.
A autarquia investiu no assentamento com aplicação de linhas de crédito, construção e reforma de casas e concessão do Pronaf. Também destinou recursos na construção de um posto de saúde que atende aos assentados e na reforma e ampliação de uma pequena escola que havia em Botafogo, bairro situado no limite entre Cabo Frio e São Pedro da Aldeia.
Em 1987, o Incra desapropriou as glebas E, F e G da antiga fazenda Campos Novos. Em 1992 foi criado, no local, o assentamento Remanescentes Campos Novos, abrangendo 1,8 mil hectares, onde vivem 174 famílias. Estas terras são marcadas pelos conflitos mais intensos ocorridos na região. Entre eles, tornou-se emblemático o assassinato do presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Cabo Frio, Sebastião Lan, em junho de 1988.
Quem relata a história dos dois assentamentos é o servidor do Incra/RJ, Selvo Siqueira, que trabalhou no escritório do Incra na região. “Essas duas áreas foram desapropriadas por tensão social, era onde tinha muitos conflitos, muitas mortes e muitos problemas. Inclusive, atrás da própria sede da fazenda Campos Novos existe um cemitério e se tem muita história em relação a isso”, revela.
De acordo com Silveira, a gleba H da fazenda não foi desapropriada na época por estar registrada em nome de um loteamento. É no local onde fica o casarão principal e sede da antiga Fazenda Campos Novos. A construção foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Artístico Histórico Artístico Nacional (Iphan) em 2014, ano em que foi encontrada uma moeda de 1788 nas suas instalações. No passado, o casarão já recebeu personalidades como o monarca Dom Pedro II e o naturalista britânico Charles Darwin.
Comunidades quilombolas
Apesar das lutas, as famílias que descendem dos antigos trabalhadores da fazenda Campos Novos também comemoram vitórias. Em novembro de 2011, uma grande festa reuniu quilombolas de todo o Estado do Rio de Janeiro no campo de futebol da comunidade Preto Forro, em Cabo Frio, para celebrar a conquista do título definitivo em nome da Associação de Remanescentes de Quilombo de Preto Forro. Foram as primeiras famílias com um sofrido passado histórico marcado pela Fazenda Santo Ignácio dos Campos Novos a receberem a posse da terra.
Formada por 14 famílias, com aproximadamente 80 pessoas, a comunidade Preto Forro descende dos negros que ocuparam a área onde moram desde antes da abolição da escravatura. O quilombo também já foi chamado de Palhada, Morro da Batata e Campos das Éguas, em referência ao trabalho dos moradores no plantio de mandioca e batata e na criação de cavalos. O nome Preto Forro foi o que mais se popularizou. Antes de 1888, o termo era usado pelas pessoas “de fora” para referir-se aos moradores da comunidade.
As terras da comunidade, ocupadas por quatro gerações, foram doadas pelo então proprietário Antônio dos Santos às famílias escravizadas que ele alforriou. Como era comum na época, também receberam dele o sobrenome “Santos”.
Na cerimônia de titulação, o presidente da associação do Preto Forro, Elias Santos, declarou ao Incra/RJ seu sentimento de prestígio: “A gente se sente privilegiado com essa titulação porque quilombola vive sendo ameaçado de ser expulso de suas terras. Nós não teríamos condições de parar nas favelas, porque a gente sempre trabalhou na roça, não iríamos conseguir sobreviver”, desabafou.
Mesmo depois de ter recebido o título, os moradores da comunidade Preto Forro ainda participam de reuniões de Mesas Quilombolas para acompanhar o andamento dos processos de titulação das comunidades vizinhas. São elas: o território de Caveira, em São Pedro da Aldeia, pleiteado por 162 famílias; Rasa, com 491 famílias cadastradas, e Baía Formosa, com 120 famílias, ambos em Armação dos Búzios; e Botafogo, com 37 famílias, e Maria Joaquina, com 79 famílias, ambos localizados em Cabo Frio.
Conforme explica o chefe do Serviço Quilombola do Incra/RJ, o antropólogo Miguel Cardoso, cada um desses processos de regularização fundiária está em uma fase diferente do trabalho. “No Caveira está sendo elaborado o parecer de mérito, anterior ao decreto de desapropriação, a ser publicado em Brasília (DF). No Botafogo, composto por assentados do Incra que hoje se reconhecem como quilombolas e só reivindicaram os lotes onde moram, já foi emitida a portaria de reconhecimento. Baía Formosa está em fase de conclusão do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID); Rasa está na fase de contestações do relatório; e Maria Joaquina já está com o RTID publicado, terminando as notificações aos confrontantes”, anunciou.
Embora ainda esteja em uma fase inicial do processo de titulação no Incra, a comunidade Baía Formosa já teve motivo para comemorar. Em outubro de 2019, a principal área pleiteada pela comunidade, correspondente a 800 mil metros quadrados da fazenda Porto Velho, foi doada pelos herdeiros da propriedade para a Associação dos Remanescentes Quilombolas de Baía Formosa: um feito inédito no Estado do Rio de Janeiro. Agora, só resta um trecho menor a ser titulado.